sábado, 18 de julho de 2009

Tecendo o manto

Meu amor vai viajar.

Arrumei-lhe as malas, montei enxoval novinho, lavei suas roupas: ele vai.

E o ir, independente do certeiro voltar, abre flancos imensos na minha cama de lençóis estranhos - precipícios, por onde mergulharão meus olhos e meu sono.

Há corpo faltando no espaço vazio: meu obstáculo amoroso que abriga e aquece. Falta um respiro que já sei, quando cansado; falta a palavra que passeia distraída pela casa buscando meus ouvidos obsedados de silêncio; as roupas a repousarem nos lugares errados; as meias como línguas pretas saindo dos sapatos e lambendo o chão.

Falta um alisar de barriga na fome e um fechar de olhos na saciedade.

Ele vai, mas ele volta. Chamarei todos os dias o seu nome no mais profundo do meu segredo.

Dia há, marcado para seu retorno. Ele vai e volta.

Mas algo há, entre os lençóis frios e a minha boca silente, que faz com que ele permaneça. Ulisses sempre redivivo, sempre Rei, amorosamente onipresente em mim.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

O Amor e sua dobra

Meu irmão sempre foi uma espécie bruta. Um afeto cheio de pontas a furar o mundo.

Quando pequeno, levantava saias das freiras, lhes atiçava água, brigava feito um touro miúdo. Comigo, por outro lado, sempre foi do amor mais puro. Do amor com sua dobra mais vincada, já quase espontânea: a perversidade.

Para além das brigas, da destruição recíproca de brinquedos no 26 de dezembro e de minhas sucessivas simulações de suicídio, comumente por enforcamento, éramos amigos e ele era um companheiro fidelíssimo das aventuras na casa grande e solitária de adultos: criávamos formigas em garrafas de Run Montilla, jogávamos gude, empinávamos arraias no céu branco das dunas, hoje, derrotadas e cinzas.

Vivíamos nosso amor profundamente, rebentando, às vezes, em tapas e lágrimas logo apaziguadas.

Numa das inúmeras tardes em que nossos gritos e brincadeiras retumbavam nos corredores da casa, resolvemos comer cachorro quente. Tudo certo, não fosse a nossa trôpega compreensão do que seria tal iguaria.

Unimo-nos ante a grande assadeira de alumínio com pimenta do reino, cebolas, extrato de tomate e tudo o mais que alcançamos na geladeira. O ingrediente mais importante, no entanto, estava na rua: uma ninhada inteira de pequenos vira-latas recém nascidos, que retiramos dos peitos da cachorra - que os trocara, certamente, por um pedaço de pão seco.

(A que extremidades de amor pode nos levar a fome?)

Enfiados nos temperos, ganindo com sal e pimenta aos olhos, os animaizinhos, desesperados, tentavam sair de nossas garras inocentes. Para nós, nada parecia estranho: tínhamos fome, e eles ali estavam era mesmo para se comer.

Postos no forno, sorte deles: não sabíamos acender as chamas. Ali ficaram até o esquecimento, sempre ganindo, e sempre crus ainda.

Eles nunca maturaram o bastante para os nossos dentes famélicos.

sábado, 11 de julho de 2009

Gestação

Antes de chegar e penetrar matreiras nas asas calmas das letras, as palavras que vou escrever me cercam.

Preenchem a língua simples com que vou à padaria, fermentam dos pães, os afetos e os silêncios. Exaltam as ruas de ladrilhos vazados, lambem as dobras calmas onde dormem os mendigos, seus irmãos. Ladram pela rua cinza, pelo escuro das curvas e mastigam, calmas como as ondas, as pedras caladas com seus veios repisados.

Há sempre um ponto iluminado de areias lavadas, um espaço translúcido onde repousa o silêncio que mora em mim no antes, onde as palavras vivem a véspera, que é sempre, enquanto não se dão, generosas, ao olhar do alheio.

Na véspera, as palavras anunciam sua chegada com o sufocante cheiro das frutas maduras.

E o silêncio, vivo nas noites de rebrilhante insônia e de idéias impacientes sentadas na ponta dos lençóis, se recolhe em enxoval completo.

domingo, 5 de julho de 2009

O olho de Deus

O olho de Deus flutua estranho entre as nuvens calmas. Deus sofre, certamente, de uma insônia crônica de olhos às veias transbordantes de sangue, como rios incontidos.

Ele não ressona desfeito de Si, Ele nem cochila. Eu, que durmo atirada ao precipício dos tranquilizantes que me dão sonhos intranquilos, tenho inveja de Deus. Ia dizer que tenho pena, mas também tenho inveja.

Tenho inveja deste sonho feio Seu, vivido na lucidez da luz acesa.
Tenho pena dos Seus olhos de tudo ver, olhos embotados de tanto enxergar.

Tenho inveja e tenho pena.

Hoje, quando acordei de pesadelos estranhos que dançaram ensandecidos no palco cerrado de minhas pálpebras obsedadas, pensei neste Deus que não pode dormir.

Hoje O acolheria dolente nos meus braços, ele apequenado, cansado, eu, sua enfermeira caridosa, lhe ministraria remédios que lhe fechariam os olhos e lhe diria que, independente de sua insone vigília, o mundo continuaria a rodar torto como um pião mal-enrolado.

E ele, finalmente, dormiria com os anjos, do céu e do inferno, dizendo Amém.