quinta-feira, 23 de abril de 2009

Oração pelos meus inimigos


Querida mãe,

Como sabes, tenho pouco sangue nos olhos, raiva pouca, que se consome toda em si, sem mácula mais pra dela dizer, vez que sofro da memória para as coisas que doem. Sei que no caminho que traço, ainda que olhando atenta ao chão marcado, sempre piso cá e lá, num dedo solto de sentimento, numa aba esparramada de chinelas, piso em medos, invejas, e mais sabe-Deus-o-quê. E há sempre quem não me perdoa a existência...

Se duas broncopneumonias não me mataram, abalaram apenas os pulmões, me dando um respiro – como um choro – abafado; se atravessei quase imune mortes, perdas, desamparos; se suportei estar trancada sempre pelo lado de fora das amizades, das brincadeiras e dos olhares cúmplices; não há de ser um mal agouro, um pesar tristonho que me derrubará.

Mãe, já pensei muito em pedir perdão, confessando erros, fazendo promessas. Mas há inimigo meu que mal suporta me olhar. E tenho tanta pena de sua dor desconsolada, de seu ódio que, como um doido, se surra na escuridão, que venho pedir, não por mim, mas por eles, sua misericórdia.

Mãe, dá a estes que me odeiam, me desgostam ou, simplesmente, não se dão comigo, a oportunidade da alegria. Realiza hoje, Mãe amada, um seu desejo há muito esperado, faz para eles como se para mim fosse, e é com este coração fraterno que lhe peço.

Venho lhe rogar, humildemente, o seu Amor de Mãe para estas pessoas. E clamo por seu nome para que os tome em seus braços, os console, lhes dê o choro ou o sorriso de que necessitam para que possam eles, satisfeitos, abrigados e sanados, relevar meus erros (in)conscientes e, finalmente, se esquecer de mim

Grata estou, Mãe querida, pela sua Misericórdia.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Para mim e para todos nós

Não se preocupem, todo precipício tem,
dentro de si, um início.


"...Mas nem sempre é necessário tornar-se forte.Temos que respeitar a nossa fraqueza. Então, são lágrimas suaves, de uma tristeza legítima a qual temos direito. Elas correm devagar e quando passam pelos lábios sente-se aquele gosto salgado, límpido, produto de nossa dor mais profunda"

(Merleau-Ponty)


Deus, como venho fazendo isso...nem sempre por querer, uma vez que a tristeza vem de aluvião e domina o espaço, a cena, o olhar. Mas venho tentando me compreender, me dar a chance de ser vil, de ser menor, de não entender o mundo e as pessoas que estão por dentro dele. Ando compreendendo que sou mesmo fraca, e isto não me envergonha tanto quanto antes, sou mesmo menor, e isto não me diminui tanto diante dos outros, nem diante de mim.


Tem dias que choro até ficar branda. Tem horas em que não posso chorar, e isso é muito doloroso...tem horas em que espero, e me preparo de corpo inteiro, para a facada do inimigo, mas, aí, ele me dá um sorriso amigo tão acolhedor, que me abro primaveril, para as abelhas com seu ferrão.


O que eu mais queria, como Pequena Flor uma vez quis, era não ser devorada pelo mundo...


quinta-feira, 9 de abril de 2009

Dona Olegária



"Deus te fez, Deus te crou, Deus te livre das vistas que mau te olhou.
Com dois te botaram, com três eu tiro, com os poderes de Deus,
da Virgem Maria e de Jesus de Nazaré,
seu filho concebido sem mágoa e sem pecado."


**


Quando era pequena era cheia de achaques... Hoje ainda sou, mas não tenho mais a rezadeira que me tirava os males do corpo e os olhos de mal-olhar.


Ainda me falta, no pedaço oco da lembrança, indagar a minha mãe quais os motivos de, vez por outra, eu ser rezada. Mas o que não se pode esquecer é a sala meio escura, com Cosme e Damião ao alto, velas queimando o ar com sua fumaça preta, e os olhos daquela mulher: Dona Olegária.


Lembro, certa vez, devia ser mesmo caso de urgência, meu pai me levando nos braços e me segurando enquanto as folhas comiam meu corpo como pulgas de dentes finos, algo se ouvia da voz calejada de tanto caminhar pelas mesmas palavras, os dedos finos me dando volta no corpo, unhas desleixadas e crescidas sem regras, umas mais afiadas que as outras.


Na imagem que traço daquele espaço, vejo uma tapera de palhas estranhas, cheiro de feijão sempre ao fogo, galinhas ciscando o chão, nervosas; lembro dos vestidos sempre acinzentados de flores descoloridas e dos olhos, grandes, no seu branco contaminado por veias finas e uma bola mágica, negra e soberana brilhando na moldura meio cinza onde flutua a memória e o incenso queimado na lata de leite Ninho.


Queria, hoje de novo, Dona Olegária me rezando em voz sussurrada, me espancando com folhas já murchas e queimando minha sola dos pés no vapor cheiroso do incenso. Ali estava o antídoto para todas as dores, o espaço mágico de uma casa que se apagou, na ploriferação bacteriológica das favelas, do horizonte da casa antiga.



Judas em Sábado de Aleluia

Na casa grande, mal-dividida e sempre em construção de Nova Brasília de Itapuã, os tristes festejos da Semana Santa eram atravessados por uma ritualística profana profundamente sagrada.

Na sexta-feira, quando o silêncio retumbava cego confrontando-se com as paredes de casa, a vida se dava em passos pequenos, as cores mornas ornavam os corpos com roupas velhas, já surradas; a televisão, independentemente de sua programação, naquele dia estava escanteada, gestos brandos, fala baixa, nada de ligar a radiola ou encher a manilha, afinal, a chuva e as cores cinzas pelo céu também compunham o ritual da tristeza. A cozinha, entretanto, pulsava nas cores douradas do dendê e no som do coco seco quebrado no cimento duro para, mais tarde, triturado, regar a moqueca de peixe com caramuru (espécie de cobra d’água pescada por painho nas locas das pedras da praia de Itapuã). No prato, sempre fundo, o arroz branco e bem temperado com alho era banhado pelo caldo grosso do feijão de leite, que escorria nodoso debaixo da moqueca fumegante. Sobre eles, a farinha ajudava os dedos rápidos a pilar o bolo de pirão devorado com sofreguidão das mãos sempre limpas de mainha.

Mas nada disso acontecia antes do outro ritual, um que começava sempre com uma ligação para vovó, para minhas tias e perdurava durante toda a manhã, quando as ligações dos familiares rebentavam em lágrimas e pedidos sinceros de desculpas: sexta-feira santa é o dia do perdão. Não se briga, não se diz palavrão e quem xinga a mãe vira cavala... E aqui ressoa a voz da narradora da história da menina que destratou a mãe e virou cavala, não égua, cavala, gritando, enquanto voava por cima da casa: “cavala, cavala, cavala!”.

Quanto aos xingamentos aos pais, me parecia, estavam liberados.

Após o almoço o silêncio do filme bíblico assistido no escuro da sala era violado apenas pelo pagode sujo dos bêbados da rua, que atiçavam suas vozes desafinadas contra as janelas e portas: todas fechadas.

O sábado de aleluia despertava brilhante, de boca em boca deslizava o burburinho sobre a queima do Judas de Seu Zuza, o dono da padaria: o rico, dentre os pobres. Aguardávamos a queima da noite roendo os restos a moqueca da véspera, a esta altura mais gostosa, e já ouvindo ao longe algum som, algum riso.

À noite, painho subia conosco a rua de ladeira íngreme, no meio, uma coluna de madeira sustentava o Judas. Num dado ano ele foi batizado de Fernando J. , nome de um péssimo prefeito de Salvador. Havia, acima da boca riscada com tinta acrílica vermelha (tomada emprestada na casa de Tonho, fofoqueiro-mor e pintor do bairro), um bigode ralo que, plantado no rosto pálido feito com uma camisa velha, fazia conjunto com os óculos e a imitação de um paletó marrom, quase preto.

Saíamos alegres para ver o Judas. Antes da queima, todos admiravam o sujeito, contavam histórias escabrosas sobre sua maldade e botavam reparo sobre com quem da comunidade o tal se parecia. Era uma catarse coletiva: os homens davam pauladas nas pernas do Judas e nós, crianças, podíamos atiçar pedras nele sem medo, pois ali a vingança era a tônica, parecia que ali o que se queimava era o Judas cotidiano de cada um.

Quando finalmente se tocava o fogo e estouravam os fogos presos às mãos, cabeça e enfiados no furico do Judas, as moças maiores aproveitavam a distração dos pais e corriam para os becos para um namoro sôfrego, e desregrado, já que ali era o espaço da redenção universal e os beijos, mãos e roçar de sexos que ali se davam jamais resultariam num filho, pois que, ali, todo pecado estava automaticamente perdoado: fora já eleito o primordial pecador.

Depois, na leitura do testamento de Judas, quando o espólio feio e pobre era distribuído pela vizinhança, as mulheres que não trabalhavam de dia, também chamadas pelas que trabalhavam (de maneira absolutamente politicamente incorreta) de “nigrinhas” (ainda que não fossem negras) cheias de si, soltavam grandes e finos urros, batiam nas coxas grossas e, a cada batida, os seios fartos desabrigados de sutiã balançavam ante os olhos dos pais de família, que, certamente, fariam hora-extra ali na noite de domingo de Páscoa...

Depois, redimidos todos, lavados e salvos, retomávamos as brigas, os sons, os trabalhadores, possíveis bêbados do sábado, iam de olhos vermelhos ladeira abaixo buscar o ônibus das cinco e meia.

E o mundo se entregava a nós todos, limpo e imaculado.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Do instinto como estratégia

Um rio não planeja, submisso à possibilidade da terra, os caminhos por onde, em riacho, ele irá abrindo caminho para sua água caudalosa.

Com isso, afirmo, ora ciente, diante dos inúmeros tabuleiros que a vida coloca ante a mim, que não sei jogar. Se jogo é estratégia, planejamento, antecipação, capacidade de olhar o outro como inimigo, oponente, obstáculo: não sei jogar.

Isso às vezes me destrói. Me espanto com a quantidade de gente que joga, delibaradamente, com tudo. Diante de si, amizades negócios, uma cerveja gelada na esquina, uma confissão: tudo é jogo.

Eu, por meu turno, já tentei, e muito, e sempre perco: xadrez, dama, truco, paciência...até diante do computador as regras do jogo me parecem mistérios insolúveis que, apenas, adiam a cena que, a mim, mais me importa: o momento em que, findo o jogo, cessam as cartas de rolar sobre a mesa e nos sobram as duas mãos vazias.

A regra primordial do meu jogo é a minha intuição, é o meu afeto. Com os ouvidos herdados de meu pai, um imponente caçador, ausculto os sons que vêm da floresta fechada, atiro certeira flecha que, no momento certo, alcançará o alvo, crendo, como muito se diz na minha terra, que tudo deve ser entregue à Divindade maior: o Tempo.

Quando olho em volta, vejo jogadores de olhos tristes, cegos ao caminho óbvio, do amor aberto e puro que nos atravessa. E ante tantas estradas que nos levam ao cerne que brilha no coração do outro, os jogadores caminham sozinhos pelos atalhos escuros onde a luz não penetra.

E não entendem que, às vezes, mesmo quando se ganha, se perde.